O interior da minha boca é feito do que me envolve e tem sabor a ferro. Lá dentro está todo o universo dos meus desejos de mão dada com o que temo. Tenho pêlos nas nuvens do céu-da-boca e Outono com açúcar baunilhado debaixo da língua, enquanto me escorre água ferrugenta pela garganta.
Os meus dedos, árvores numa planície alentejana, inertes e solitários, sentem o pousar dos pássaros e imóveis aconchegam-lhes o ninho com inveja. São pesados, carregados pelas chuvas intensas de inverno. São madeira velha a apodrecer dia após dia ao relento. Ao acordar são os meus olhos, duas ostras perdidas num oceano de dúvidas e sal. São um fim de tarde quente de Agosto e ao anoitecer é o olfacto de uma cidade cosmopolita. O cheiro a alcatrão e suor, e humidade primaveril.
Em todo o tempo é o limite entre o silêncio e o ruído. É o meu silêncio por oposição ao ruído do movimento desse mundo que vive aqui ao lado. É o meu ruído existencial interior, que vive incessante e ansioso face ao silêncio do universo. Em todo o lado, a toda a hora, são esses extremos a confundir-se, e depois é o coração. Esse órgão de todos os sentidos que carrega consigo todas as estações do ano e todas as outras mais que só ele conhece. É todos os sentidos de antenas no ar, um coração com pêlos e todas as fases da lua. É o orvalho da manhã numa chapa queimada pelas marcas que lhe deram vida. É o frio e o quente, o vento e o silêncio, a cidade e o sabor a cappuccino com canela, de mãos dadas a deslumbrar constelações.
(não apontei a data em que escrevi isto.)